Antirracismo e a construção de uma sociedade transformadora
Artigo escrito por Camilla Paixão* e Vanessa Araújo Correia** para a edição especial do informativo Em Companhia
Em janeiro de 2023, completam-se 20 anos da promulgação da Lei nº. 10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Base (LDB) nº. 9.394/96 e regulamenta a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africanas e afro-brasileiras e da educação das relações raciais na educação básica. Em 2008, a Lei nº 11.645/08 também incluiu no currículo oficial a história e a cultura dos povos indígenas do Brasil.
Mais recente, a Lei nº. 12.711/12, conhecida como Lei de Cotas, estabeleceu a reserva de 50% das vagas oferecidas em instituições de Ensino Superior e Institutos Federais a candidatos que estudaram em escolas públicas, tenham renda familiar per capta igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo e/ou sejam autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Na sequência, a Lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação, obriga os entes federados a estabelecerem em seus planos subnacionais estratégias que considerem as necessidades específicas das comunidades indígenas e quilombolas, assegurando a equidade educacional e a diversidade cultural (Art. 8, § 1º), além de propor em sua Meta 8 igualar a escolaridade média entre negros e não negros.
Esses marcos legais são resultado de um amplo e histórico esforço dos movimentos sociais de negros e negras que lograram construir uma agenda de combate ao racismo estrutural da sociedade brasileira. A despeito desses instrumentos legais e dos avanços institucionais de enfrentamento à discriminação racial, o desenvolvimento de uma educação mais representativa de todos os grupos sociais da sociedade brasileira ainda encontra obstáculos estruturais e sistêmicos, visíveis nas desvantagens educacionais acumuladas pela população negra e indígena.
De acordo com a PNAD Contínua da Educação (2019), 71,7% dos jovens que abandonaram a escola sem completar a educação básica são negros e o tempo de escolaridade média dos estudantes afrodescendentes é quase 2 anos a menos (8,6 anos) do que o de brancos (10,4 anos), que relataram entre os principais motivos para abandono escolar a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse nos estudos (29,2%). Além disso, enquanto a taxa de analfabetismo entre negros com mais de 15 anos de idade é de quase 10%, entre brancos o índice é de 3,6% de analfabetos.
Como aprendemos com o sociólogo Pierre Bourdieu, a escola e a educação oferecida por ela podem, em vez de produzir transformação social, garantir a reprodução e a perpetuação do status quo dominante, que em nosso caso refere-se a uma sociedade estruturalmente racista. Desse modo, parece-nos necessário qualificar a educação, entendendo que o processo educativo, se resumido a uma transferência de saberes, não é transformador e replica a dinâmica de exclusão social.
Sem uma educação antirracista, o sistema escolar continuará a reproduzir as desigualdades estruturais e simbólicas que expulsam das escolas jovens negros, que não são apoiados por políticas de permanências, não desfrutam das vantagens do capital escolar, não se sentem representados entre seus docentes, nem em um currículo eurocentrado (o que, em parte, explica a falta de interesse em estudar). Ademais, uma educação não comprometida com práticas pedagógicas e políticas antirracistas seguirá formando novos colaboradores de um sistema discriminatório, em vez de formar jovens engajados com sua superação a partir de uma visão de mundo plural.
A EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E A TRADIÇÃO EDUCATIVA JESUÍTA
Tendo como objetivo central a formação de homens e mulheres para e com os demais (ARRUPE, 1998), cada unidade educativa da Companhia de Jesus deve contribuir para desenvolver nos estudantes uma fé solidária que se manifesta no compromisso com a justiça social e atos concretos de solidariedade, que ajudem a “curar esse mundo ferido” (CG 36). Assim, as unidades da Rede Jesuíta de Educação sempre estiveram voltadas a sensibilizar estudantes e colaboradores a combaterem as discriminações e a comprometerem-se com uma sociedade que respeite e valorize a diversidade, tal como expresso no Projeto Educativo Comum (2021).
Reconhecendo que nem sempre fomos exitosos em tornar nossas comunidades educativas mais diversas e inclusivas e que enfrentar o racismo estrutural e as várias formas de discriminação exige decisões e ações contundentes, contínuas e explícitas, desde 2020 algumas unidades da Rede Jesuíta de Educação Básica (RJE), assim como outras escolas privadas no Brasil, assumiram de forma mais enfática seu compromisso com uma educação antirracista. É o caso dos colégios Antônio Vieira, São Luís, Diocesano Francisco de Sales,Diocesano Infantil e Santo Inácio do Rio de Janeiro (RJ) e Fortaleza (CE).
É preciso definir a educação antirracista como aquela que reconhece as múltiplas contribuições na construção da história e desenvolvimento da humanidade e atua afirmativamente para prevenir, superar e reparar as desigualdades étnico-raciais em todos os campos (do relacional ao curricular). Esse reconhecimento requer a adoção de práticas e estratégias de valorização da diversidade cultural e étnico-racial, o compromisso com a superação das desigualdades e violências raciais, desnaturalização de estereótipos que produzem subalternidade de determinadas etnias, ampliação do repertório histórico-cultural a partir da incorporação curricular de perspectivas filosóficas, personagens históricos e produção cultural e científica de negros(as) e indígenas que sofreram apagamento sistemático ao longo da história.
Nesse sentido, as unidades da RJE já mencionadas vêm adotando medidas acadêmicas e administrativas de combate e reparação de discriminação étnico-racial. O Colégio Antônio Vieira criou em 2020 um Comitê de Educação Étnico-Racial e de Gênero, com o intuito de realizar ações formativas específicas junto à comunidade educativa, além de sistematizar ações e práticas antirracistas e antissexistas. O Colégio São Luís, em 2021, a partir de uma interpelação vinda das famílias, declarou-se publicamente como instituição antirracista. Desde então, tem uma comissão antirracismo intersetorial e um grupo de trabalho composto por docentes de todos os segmentos, responsáveis por analisar, fortalecer e propor práticas e projetos de conscientização, prevenção e reparação de práticas discriminatórias. O Colégio Diocesano São Francisco de Sales e Diocesano Infantil declarou-se como instituição antirracista e criou um grupo de trabalho dedicado ao estudo e estruturação da mobilização para educação das relações étnico-raciais e de gênero.
As escolas da RJE, em suas realidades específicas, têm desenvolvido um conjunto de ações que visam ampliar o acesso à produção literária e científica de autores negros e indígenas, promover mudanças curriculares que garantam a representação positiva de grupos historicamente marginalizados, aumentar a diversidade étnico- -racial no corpo discente, docente, administrativo e gestor, promover o letramento racial crítico de suas comunidades acadêmicas etc.
A complexidade do problema do racismo no Brasil tem gerado consequências que produzem impactos extremamente negativos na sociedade, impedindo avanços econômicos, tecnológicos, científicos e de desenvolvimento humano. Trata-se, portanto, de um fenômeno bastante importante, que deve evocar nosso mais intenso sentido de responsabilidade social. Pe. Arrupe, em 1967, em carta voltada aos jesuítas dos Estados Unidos e do mundo todo, alertava que o racismo violenta a visão evangélica de humano e que a justiça e a caridade interraciais são parte integrante e vital de nossa fé e nosso compromisso apostólico.
A educação antirracista, nesse sentido, é um elemento fundamental no combate ao racismo estrutural, à medida em que contribui para transformar não apenas cosmovisões e modos de pensar, mas para romper paradigmas coloniais de subalternidade intelectual, produtiva e criativa de povos historicamente dominados. Os esforços empreendidos em uma educação antirracista nas Unidades da RJE devem contemplar todas as transformações curriculares, administrativas e relacionais necessárias, de forma definitiva e radical. E devem, igualmente, levar ao engajamento público com a reivindicação de políticas públicas e transformações macrossociais, que modifiquem as desigualdades étnico- -raciais que até aqui estruturaram a sociedade brasileira.
*Camila Paixão é orientadora educacional e coordenadora do Comitê de Educação Étnico-Racial e de Gênero do Colégio Antônio Vieira
**Vanessa Araújo Correia é coordenadora da Área Projeto de Vida e da Comissão Antirracismo do Colégio São Luís
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